Roda Viva
Por Erika Gimenez
Quase meia-noite de uma segunda-feira. A sensação era a de ter assistido a um clássico entre o Palmeiras e o maior rival – e ter ganhado o jogo dando espetáculo. Mas não, não era um jogo de nenhum campeonato que tinha terminado. Subiam na tela da TV os letreiros dos créditos do programa Roda Viva, um dos mais tradicionais e íntegros programas de entrevistas do nosso país, produzido pela TV Cultura desde 1986.
E ao centro, girando como a bola e sendo sabatinado pelos jornalistas, estava Abel Ferreira, nosso técnico, visivelmente honrado por se sentar onde já estiveram Telê Santana e Ayrton Senna, como ele mesmo se lembrou logo no início do programa.
Estava ali como convidado por inúmeras razões: pelo comando do Palmeiras numa fase vitoriosa, tendo conseguido participar de oito finais e vencer quatro desde 11/2020, por ser um profissional jovem, ambicioso e que diz o que pensa, por ter lançado um livro junto com sua comissão técnica e por despertar opiniões controversas e polêmicas da mídia.
Acusado de ser arrogante por alguns, demonstrou ao longo de quase duas horas de entrevista ser muito humilde. E não era falsa humildade, como em muitos casos podemos facilmente identificar. Era autêntico.
Admitiu ter tido sorte no jogo com o Galo na Libertadores passada e lembrou a todos o que os comentaristas esquecem com frequência: o futebol é, essencialmente, um jogo. Um jogo de muitas variáveis em que o imponderável também atua. Não só as estatísticas e índices de desempenho. Por isso mesmo é o mais apaixonante dos esportes. E disse isso sendo um grande estudioso do futebol e dos esportes, um devorador de literatura sobre o assunto. E, agora, com o livro “Cabeça Fria, Coração Quente”, ele passa também a contribuir com as reflexões sobre o futebol, deixando claro que não teme dividir conhecimento. Porque para ele conhecimento dividido multiplica as possibilidades, conhecimento não é limitante, não é secreto.
Para entender o futebol, Abel lê sobre grandes personalidades vencedoras, lê sobre técnicos campões, sobre tática, lê sobre o futsal brasileiro. Aborda o xadrez, exemplificando jogadas ensaiadas. E declara que o livro recém-publicado, sucesso de vendas e já esgotado, não é sobre a vitória. É também, e principalmente, sobre as derrotas. Como assim é a vida.
Gentil, tranquilo e franco, respondeu todas as perguntas com serenidade absoluta, e foram quase quarenta. Falou sobre nosso Mundial sem rodeios, sobre a renovação – primeira pergunta feita pela apresentadora, a quem respondeu dizendo já ter decidido, mas que comunicaria primeiro aos jogadores, que são sua família aqui. Falou sobre a importância da formação de técnicos, sobre as negociações de venda e compra de jogadores que não consegue entender, sobre as possibilidades que temos para melhorar o futebol brasileiro e como fazê-lo. Falou sobre a necessidade dos clubes se unirem para isso, ao invés de se preocuparem apenas com “seu quintal”. Refletiu sobre as prioridades e valores que devem nortear as relações. Confessou solidão e saudade da família ao dizer que ouve muito em casa a música “Sozinho”, interpretada por Caetano Veloso, e deixou escapar até um breve relato de juventude ao som de axé. Disse que a família não queria que ele viesse e que contrariou a todos, receosos de que por aqui ele fosse mais uma vítima do moedor de técnicos de futebol brasileiro.
Talvez alguns aleguem que Abel não disse nenhuma novidade. Mas o fato é que ele trouxe para reflexão com muita propriedade o que precisa ser dito sempre até que seja posto em prática. Exemplificou e deu caminhos para isso, mostrando-se otimista por uma reformulação no nosso futebol. Demonstrou a urgência do planejamento e do diálogo entre todos que operam em volta dele: clubes, CBF, televisões, mídia. Relembrou que jogadores de futebol são seres humanos, não máquinas. Assim como os treinadores, são falíveis, e Abel confessou ter vergonha de algumas atitudes à beira do campo. Aquele Abel seria o outro lado, o que extravasa sem limites, mas não é o Abel inteiro – uma espécie de Jekyll and Hyde que amamos, porque nos reflete. É o Abel que ele quer domar, pois com tanta intensidade já se sente exausto aos 43 anos, com a barba branca. Essa entrega é intensa ao ponto de fazê-lo acreditar que daqui cinco anos deixará de ser técnico. Será?
Perguntado, Abel falou francamente sobre a negociação de Patrick, sobre as escolhas que sua função exige que ele faça, contou sobre seu relacionamento com os jogadores, sobre como se sente em sintonia no Palmeiras, desconversou sobre assumir a vaga de Tite (vade retro!), mencionou os comentaristas que o ofenderam sem se alterar em situação alguma. De entrevistado passou a encantador.
Abel encanta porque tem paixão no olhar e alma de professor, aquele professor ou professora que todo mundo lembra na vida, da faculdade ou de antes, que plantou uma semente e a gente não consegue esquecer. Abel mostra essa vocação nitidamente. O que o move é a possibilidade de desenvolver o melhor das pessoas, respeitando a individualidade de cada um, despertando um sentimento de coletividade. Mais ou menos como o palmeirense João Cabral de Melo Neto poetizou em “Tecendo a manhã”, Abel é o cara que desperta em cada um o porco que vai tecendo a glória do chiqueiro inteiro. Ele é verdadeiro e de fato é campeão.
E assim ele vai tocando um time e uma torcida, chamando para o “todos somos um”. Na vitória e na derrota, na alegria e na tristeza.
Para qualquer palmeirense, mesmo aquele mais reticente, está sendo uma experiência única ter com Abel Ferreira essa representatividade. Ele, que não nasceu palmeirense, na verdade nasceu palmeirense e não sabia. Ele, que não cruzou o oceano para passar férias, é a nossa cara e com ele estamos em foco, sob os holofotes, porque somos vitoriosos, porque somos verdadeiros, porque somos competentes, porque temos o que dizer. E temos voz.
Essa é a onda que precisamos surfar. Talvez o Palmeiras nunca tenha vivido algo parecido, não em termos de vitórias, mas, muito além dos troféus, desse papel, dessa importância. Assumir tal responsabilidade definirá nosso protagonismo futuro. Surgiu o alviverde imponente.
Utopicamente, o desejo é de ele fique aqui para sempre. Que ele continue semeando as sementes que tem. São muitas e são boas. Está feliz no Palmeiras e lá tais sementes têm solo fértil. Que germinem!
Ao final do programa, sentimos que o tempo passou rápido demais e que ele poderia ficar ali respondendo por mais dois programas, no mínimo. Como na canção, “O tempo rodou num instante/ Nas voltas do meu coração”. Certamente vamos rever esse Roda Viva histórico e recuperar as entrelinhas e os detalhes que passaram despercebidos. O que não passou despercebido foram os olhares de admiração que Abel recebeu.
Verdade que Abel não inventou a roda. Mas a roda é viva, ela gira, e Abel parece saber para onde.
Palmeirenses, nós sabemos bem o que vem pela frente, que a dureza do prélio não tarda. Por enquanto, vamos desfrutar. Estamos vivendo um momento único. Torcida que canta e vibra: vibre!
Ah, já ia me esquecendo: esqueçam o 9! Tragam ela, a dona do coração do Abel!!
***
Erika Gimenez é a nova colunista do Pérola aos Porcos (mas também antiga colaboradora do 3VV). Foi convidada a escrever sobre esse esplendor de entrevista de Abel Ferreira no Roda Viva porque dentre os colaboradores do nosso site sabíamos que a Erika era uma das poucas pessoas, senão a única dentre nós, que teria a sensibilidade suficiente para captar as nuances mais profundas e também relevantes dessa entrevista. Parabéns por esse lindo texto Erika! VC
Comments (15)
Leo Basile
Quanta pieguice para enaltecer um Mano Menezes com sotaque! Virou até intelectual esse português. E o povo compra.
Sinal dos tempos…🤦
Roger
Sempre bom ler seus textos Erika! Avantiii
Joacir Souza
Parabéns Erika, o time falou em seres a única com tamanha sensibilidade e capacidade, mas superastes com maestria todas as expectativas….
Orgulho máximo do Palmeiras, do Abel e de ti…
Pinho – Bauru, SP
Sensacional Érika!!! Texto perfeito… retratou de maneira exemplar a bela entrevista do Abel no Roda Viva…. ótima estreia!! Ansioso pelos próximos textos!!! Sucesso!
Danilo
Belo texto, como sempre!
Donato, o Lúcido
Erika, (mais um) texto sensacional de sua autoria! Um perfeito retrato do que foi a entrevista, nos seus mínimos detalhes. Se alguém cometeu a imprudência de não assistir o programa, tem, neste texto, tudo e mais um pouco do que foi este momento histórico e glorioso para a Sociedade Esportiva Palmeiras. O que Abel falou transcende em muito o futebol. Nos deu uma aula de como podemos ser melhores profissionalmente e pessoalmente. Quem tem ouvidos, ouça!
Valter
Texto primoroso. Parabéns minha amiga
Matheus
Texto brilhante!
Debora
Erika, parabéns pelo texto. Que sensação boa ler suas palavras sobre nosso técnico e nosso time. Parabéns pela estreia, aguardamos os proximos textos que, com certeza, serão um arraso. Bjao
Toninho Blanes
Parabéns Erika, texto perfeito, mostra a sua capacidade de observar cada momento de uma histórica entrevista.
Seja bem vinda ao 3VV.
wagner gimenez
so podia isso tudo sair de voce ne Erika!!, “todos somos um”
Jose Roberto Tammaro
Sensacional a estreia não poderia ser melhor e o tema espetacular Orgulho de ser verde
Fabio
Sensacional Erika! Seus olhos e ouvidos captaram cada detalhe dessa entrevista, mesmo aqueles mais escondidos.
Roberval Maimone
Sensacional, Erika. Uma aula de Palestrinidade. Parabéns !!
JOTA
apenas brilhante; falou e disse! belíssima estreia, aguardamos o próximo capitulo, promete!