Ademir da Guia, 80 anos: a eternidade do Palmeiras passa pelos seus pés

“O Ademir pensava de maneira diferente. Ele via outro jogo. Quando a gente pensava que ele estava parado, se arrastando, ele sumia e aparecia na ponta direita. Era um fantasma. Ninguém o achava.”

Era assim que os cariocas viam o Divino passeando pelo campo, seja no Maracanã, ou no Parque Antártica. Ademir da Guia era lento somente para os pobres de espírito – como Zagalo, que ousou manter na Copa de 1974 Rivellino machucado e, sim, se arrastando…

Ademir da Guia tinha o respeito dos gigantes. Pelé o considerava um estilista e quase “imarcável”, como disse certa vez em um documentário perdido no tempo; Paulo César Caju o reverenciava como o homem das sombras, aquele que estava aqui e, de repente, estava lá.

“As passadas dele eram largas e altivas, enganava todo mundo”, disse Caju certa vez em uma roda de amigos em um restaurante de um certo jornal paulistano. “Quando ele dominava a bola e olhava para frente, era hora de recuar. Ninguém conseguia tirá-la dele. Torcíamos para ele passar de lado para aí tentarmos roubar e contra-atacar – isso quando o Dudu deixava. Se a bola estivesse com o Ademir, esquece…”

Ademir era gênio? “Dos mais gênios que existiram, daqueles inigualáveis”, lembra Caju rasgando o verbo. “Ele flutuava em campo e comandava sem abrir a boca. Leão adorava pagar geral e o Luisão (Pereira) também não deixava barato, mas era só o Divino chegar perto que todo mundo parava de falar. O silêncio do mestre colocava ordem na casa sem nenhum pio. Quando a gente vinha a São Paulo jogar contra o Palmeiras naquele tempo, seja Vasco, Fluminense, Botafogo, agradecia muito quando perdíamos só de 2 a 0.”

Feitos um para o outro, Ademir e Palmeiras é um caso de amor perfeito. Só na Academia, nas duas por sinal, seria possível o Divino brilhar de todas as maneiras, em toda a sua plenitude.

Cobiçado muita gente naquele time de aspirantes do Bangu de 1960, talvez tivesse submergido no Botafogo de Garrincha, Gérson, Didi, Nilton Santos e outras feras. Imagine o quieto e soberbo Ademir ter de disputar espaço com o “papagaio” Gerson ou com o altivo e soberano Didi?

Será que ele teria espaço naquele brilhante Fluminense de Telê Santana e Castilho, onde as línguas eram ferinas e as intrigas, diárias? Será que teriam paciência, no Rio de Janeiro, para aquele toque refinado e sofisticado?

Talvez não tenha havido força de vontade para apostar a sério no filho do grande Domingos da Guia. Ninguém quis pagar para ver aquele garoto magrelo e tímido exibir seu futebol de fraque e cartola.

Para um jogo de sua estirpe, tinha de ser em uma verdadeira Academia, onde o futebol era tratado não com show, mas com máxima vênia da arte superior.

Enquanto os carioca se exibiam e desfilavam, os paulistas estudavam e elevavam o futebol a um patamar diferente de arte suprema. O Santos amassava e arrasava, e somente um time o encarava, aquele que trocava o show pela eficiência, pela excelência e pela qualidade.

Já era uma joia rara no Bangu, e foi lapidada com esmero no Palmeiras. Foi preparado para ser o maestro, o condutor, o toque de gênio para as glórias de uma Academia que encantou o mundo.

A seleção brasileira o esnobou? Azar da seleção. Azar de quem não viu ou se recusou a ver o Divino passeando contra Uruguai, em 7 de setembro de 1965, quando o Palmeiras representou a nação com a camisa amarela na inauguração do Mineirão.

Era quase a mesma seleção uruguaia que um ano mais tarde quase eliminaria a Alemanha Ocidental na Copa da Inglaterra, mas que tomou um baile de 3 a 0 comandado por um fantasma, por um jogador imarcável.

Ademir da Guia era um estilista, desfilava e flutuava, mas era letal, seja marcando gols, seja oferecendo assistências precisas. Ninguém ganha o apelido de Divino à toa.

Aos 80 anos de idade, segue como a referência maior da grandeza do Palmeira dentro de campo, inserido na história como mestre e como gênio, mas, sobretudo, como a própria encarnação do espírito esmeraldino que contamina mais de 16 milhões de torcedores pelo mundo. (E ainda ganhou de presente no dia do aniversário, 3 de abril, uma goleada sobre o São Paulo que valeu o 24º título paulista de nossa história).

Ademir da Guia é sinônimo de genialidade, é o símbolo o Palmeiras gigante e figura maior de uma “religião” que orgulha a nossa sociedade. Como bem escreveu João Cabral de Melo Neto, um dos maiores intelectuais brasileiros de todos os tempos:

Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

Comments (4)

  1. parabéns Divino. Infelizmente não tive oportunidade de vê-lo jogar, juntamente com Dudu, Levinha etc. Mas você é o exemplo que todo jogador que veste nosso manto deveria seguir.

  2. Luiz Sergio Neto

    Quem deu a perfeita tradução do tamanho do talento do Divino foi o jornalista palmeirense Lucas Netto: “Ademir da guia. O resto é o resto, do rebotalho do restolhão! ” Infelizmente quando ele parou de jogar eu tinha 3 anos então só o vi por vídeos. E quanto mais o vejo, mais entendo como o bairrismo fez mal para a Seleção brasileira. Azar dela! Parabéns Divino!

  3. Pinho – Bauru, SP

    Clap, clap, clap! Divino!!!!

  4. Donato, o Lúcido

    Ademir da Guia é tão diferenciado que, além de nós, Palmeirenses, poucos sabem o que ele realmente foi ou representou.
    Quando vejo a crônica esportiva exaltando Rivellino, Zico, o tal do Sócrates, Ronaldo, Romário, Gerson (o que leva vantagem em tudo) e esquecendo Ademir da Guia, entendo o porque de estarmos aonde estamos enquanto sociedade. Ademir é essência, é enigma. É muito maior dos que citei acima neste humilde comentário. E não é qualquer ignorante da imprensa que terá a capacidade de exaltá-lo.

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