Somos a torcida do Palmeiras

Por Erika Gimenez

Há muito tempo, numa galáxia muito distante, palmeirenses apaixonados lotavam seu estádio para empurrar o time. Bem, talvez não faça tanto tempo assim e, para falar a verdade, era aqui mesmo, no planeta Terra.

Algumas coisas, porém, eram bem diferentes. A rua se chamava Turiaçu. E não, não era no Allianz Parque que os jogos aconteciam – naquele tempo, o nome ainda era Palestra Italia, conhecido também como Parque Antártica por alguns. Nele, ficávamos em pé ou sentados na arquibancada de cimento. O campo ficava elevado e havia um fosso entre a torcida e o gramado. Parecia um palco. Em ocasiões especiais, como em 1999, aquele campo transformou-se num verdadeiro altar. Não era uma Arena, mas era um lindo Jardim Suspenso.

Eram dias estranhos em que as coisas não iam bem no nosso Verdão. Infelizmente, depois de meteórica subida, estávamos vivendo a parte da vertigem descendente e turbulenta da montanha-russa. Era 2002. Não existia Whatsapp, nem Twitter, nem Instagram. A Apple, que vendia só computadores, tinha acabado de lançar um revolucionário gadget: o iPod, veja só. Nada de smartphones ainda. Nesse tempo tão longe e tão perto, uma tragédia nos abateu num triste domingo de novembro. Dói demais lembrar, mas aconteceu há quase duas décadas.

No ano seguinte, todos os jogos disputados no nosso campo tiveram as arquibancadas tomadas. Lá, no nosso Jardim Suspenso, no nosso Palestra, carregamos o time no colo, cantando e vibrando incansavelmente. Transbordávamos paixão e por ela sobrevivemos, a torcida e o time, juntos. Tínhamos todos os problemas imagináveis. Estávamos com o orgulho ferido ao extremo. Não conseguíamos entender como pudemos chegar ali. Mas tivemos dignidade, respeito, honra. Jogo a jogo, seguimos em frente, avante. Cantávamos, pulávamos, gritávamos. Não era muita coisa para comemorar, na verdade estávamos nos apoiando, time e torcida. Incentivávamos uns aos outros. Até a corneta foi branda… Precisávamos de força. E reencontramos nosso caminho.

Dez anos depois, o mesmo roteiro de terror se repetiu. Dessa vez, estávamos sem casa, ainda em obras desde 2010. Muitos dos nossos jogos aconteceram no Pacaembu, e lá estávamos nós novamente, os palmeirenses apaixonados. Cantando e vibrando incansavelmente. E dessa vez eu tinha como companhia um menino de sete anos, meu filho. Juntos, comemoramos muitos gols, muitas vitórias. Com dignidade, novamente voltamos ao nosso lugar. E meu filho era o único da escola que sabia cantar o hino do time dele de cor – os pais dos coleguinhas, desesperados, reclamavam para mim que não estavam mais tendo controle sobre a torcida de suas crianças.

O nome disso é paixão. É identificação. O nome disso é Palmeiras. E o Palmeiras escolhe seu torcedor, esse eterno apaixonado, que briga, corneta ao extremo, perde a cabeça, fala demais, se desespera, sofre, chora e ri ao mesmo tempo, grita e se cala na sequência. O palmeirense não é leve, não consegue. O palmeirense é intenso ao extremo, passional demais. Porque é palmeirense.

Ele pode ter sido o operário italiano no passado, e hoje é o intenso e passional índio, nordestino, mulato, caipira, rondoniense, carioca, paulista, paulistano, brasileiro de todo rincão, palmeirense de todo canto do mundo, que faz da camisa verde e branca sua pátria, acima de todas as diferenças (que hoje são tantas!), seja em Dublin, Braga, Sidney, Hamburgo, Goa, Tóquio, Nova Iorque.  E se todas essas características lembram alguém, de fato elas remetem, sim, a um homem que não cruzou o oceano para passar férias, que é obstinado pelo trabalho, que chuta copos d’água à beira do campo, que comemora em êxtase, que briga com sangue nos olhos pela arbitragem ruim como se fosse um de nós, que se destempera e bota a culpa num vizinho expiatório: Abel Ferreira, nosso técnico, que em pouco tempo conseguiu trazer para o Palmeiras conquistas inestimáveis, eternas. Abel, que nasceu palmeirense e não sabia. Abel, que erra, claro, e, também, acerta, inegavelmente. E que pode ainda amadurecer muito, tendo a chance de nos dar, quem sabe, outras taças gloriosas e marcar com mais intensidade seu nome em nossa história.

E por que rememorar tempos obscuros e relacioná-los com Abel? Porque sábado, depois de longos dezenove meses, teremos, finalmente, um jogo com torcida no Allianz Parque. Abel terá a oportunidade de nos olhar nos olhos. Ele já teve algumas breves experiências com a torcida em número muito pequeno – quem não se lembra todos os dias do Maracanã em 30 de janeiro de 2021? Mas nenhuma na nossa casa.

Com a volta do público aos estádios, teremos a oportunidade que aguardávamos tanto. Estaremos lá, cantando e vibrando, num momento anos luz distante das duas lastimáveis ocasiões aqui lembradas. Estaremos lá já tendo levantado duas taças nesse ano de 2021.

A intenção de trazer à lembrança os fantasmas que nos espreitam atrás da porta num passado não muito distante é manter vivas na memória as situações que já experimentamos e valorizar o que vivemos hoje. Está bom? É o suficiente para o Palmeiras? Não, nunca. Queremos e podemos mais, muito mais. Como iremos buscar esse algo mais é o que importa. Que não seja como já foi e que nos levou para onde nunca deveríamos ter ido: sem projeto, sem ambição, sem noção do nosso potencial, com metas a curto prazo e gestão cega. E que não pensem que mudanças superficiais nos guiarão a grandes conquistas. Para sermos protagonistas, a mudança a ser feita é estrutural e de mentalidade. Precisamos da urgente e obrigatória transformação conceitual. Por ora, teremos, enfim, a oportunidade de torcer com Abel. Chegou o tão esperado e merecido momento. Finalmente seremos apresentados na nossa casa, do nosso jeito, intenso e com paixão.

Prazer, Abel, nós somos a torcida do Palmeiras.

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Comments (19)

  1. Além de escrever bem a Érika foi certeira.
    Adoraria que o Abel lesse esse texto.
    E espero que a Érika escreva com mais frequência por aqui.
    Parabéns!

  2. Um primor de texto. Que me faz lamentar o nível dos jornalistas que se dizem palmeirenses na imprensa e que jamais poderiam escrever algo do gênero por simplesmente não saberem traduzir o que é ser palmeirense como fez a Erika com maestria. Que chegue às mãos de Abel Ferreira antes de sábado.

  3. Antonio Blanes

    F O R M I D A V E L , este é o meu jeito de agradecer este texto que a Erika nos trouxe, deu nó na garganta, arrepiou, levou os pensamentos lá longe e trouxe aqui tão perto, w por final disse tudo PRAZER ABEL SOMOS O PALMEIRAS

  4. Roberval Maimone

    S E N S A C I O N A L, minha caríssima Erika !!!
    Confesso que entrou um cisco no olho aqui (rsrs).
    Parabéns, sempre !!!

  5. Érika, essa carta precisa chegar ao Abel. Você sintetizou muito bem o que nós somos, e tenho a certeza que o Abel, em tão pouco tempo de Palmeiras, tem essa imagem de nós.

    Parabéns!

  6. Donato, o Lúcido

    Erika, excelente texto! Fotografia perfeita do que é a torcida do Palmeiras. Que possamos estar unidos, time e torcida, pelo objetivo maior em 27/11/

  7. wagner gimenez

    clap,clap,clap, irretocável!! Palmeirense e outra pegada!! Lindo ,parabens, te amo!!

  8. Parabéns Erica por transcrever um pouco do que cada um de nós sente!

  9. Paulo Cesar Juliani

    Muito bom! Uma parte da torcida, raivosa e barulhenta, mas pequena, felizmente, não consegue canalizar suas frustrações e fica parcialmente desprovida de discernimento. É obvio que ninguém está contente com o atual momento, mas sabemos a limitação do elenco e também sabemos que esse time NÃO foi montado e pensado pelo Abel. É praticamente o mesmo time modorrento do Luxa. E vejam onde chegamos. Mas esse torcedor raivoso e barulhento comprou a falsa ideia de que temos um elenco de Premier League e quer um futebol vistoso e eficiente. Eu também quero. Mas sem material humano, a eficiência é o que nos resta.

  10. Roger Lourenço

    Que texto sensacional! Avanti Érika!

  11. Pinho – Bauru, SP

    Perfeito Erika!!!! Parabéns pelo texto!
    Que amanhã, Abel e todo o time sejam abraçados por todos e tenham a recepção merecida. Que nosso técnico sinta-se, definitivamente, em casa! Que a união da noite de amanhã seja estendida por muito tempo… e que venham pela frente mais e mais ótimos e memoráveis momentos, títulos e tudo mais…

  12. Fabio Sgambato

    Sensacional Érika…nunca havia pensado nisso…Abel nasceu palmeirense, mas só descobriu isso há menos de um ano

  13. Sandro Clobucar

    Excelente texto! Absolutamente necessário ser lido por todos os palmeirenses de verdade!!

  14. Erika, que texto emocionante e perfeito!
    Por favor, alguem envie essa msg para o Abel. Que ele saiba o quanto nos identificamos e sabemos que ele é um verdadeiro Palneirense. Parabéns!

  15. Regina Rodrigues

    Que lindo, Érika!
    Deveria ser lido por todos os palmeirenses.
    Que esse encontro tão aguardado entre torcida e time seja de união por um mesmo objetivo!

  16. Emerson PRebianchi

    Nunca foste tão certeira Erikinha!!!!!!! Irretocável o texto!

  17. Brilhante, assertiva, no ponto certo

  18. Marco Antonio Cascino

    E quanto mais tarde essa mudança conceitual demorar a começar mais tarde teremos a excelência que buscamos, que procuramos. Lembrem-se do maratonista. Quanto mais tempo ele começar a treinar parar correr 1 mísero kilômetro mais tempo ele irá demorar para concluir os 42.195 metros da prova.

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