Árbitro de futebol: profissionalizar ou manter como está?
Por Oiti Cipriani
O futebol, em seus 163 anos de existência, tornou-se expressão lúdica e extravasamento dos mais diferentes sentimentos de toda a coletividade que acompanha este esporte, desde a alegria incontida até a raiva mais animalesca que o ser humano pode produzir.
Deixou de ser um jogo de cavalheiros, como originalmente imaginado, para se tornar objeto de paixões desvairadas, agressivas, ou simplesmente pelo prazer de assistí-lo como forma de divertimento, rivalizando com o cinema ou teatro.
Tornou-se também um enorme negócio, movimentando bilhões de euros ou dólares anualmente, com clubes e profissionais de todas as matizes, desde potências financeiras, jogadores e técnicos bilionários, até pequemos clubes de futebol, com humildes jogadores correndo atrás da bola para colocar um prato de comida na mesa da família.
No meio de muita paixão e vários contrastes, existe um ator polêmico, a única unanimidade de duas torcidas rivais, que já entra em campo sendo xingado, mesmo sem ter tomado nenhuma decisão ainda: o árbitro de uma partida de futebol e sua equipe.
Estes profissionais entram em campo, seu local de trabalho, com a difícil missão de arbitrar divergências à luz de um livro… O LIVRO DE REGRAS.
Antes de entrarmos no objeto do título deste post, vamos contar um pouco da história deste profissional contraditório, que qualquer decisão que toma dentro dos 90 minutos mais acréscimos, desagrada um lado, ou quiçá, os dois lados.
História do árbitro
No princípio do futebol, no ano de 1860, os jogos não tinham árbitros. Era mais um acordo de cavalheiros. Quando um jogador achava que tinha sofrido alguma falta ou infração às regras, parava o jogo e era aceito como verdadeira a ocorrência, tudo sem discussões, pois cavalheiros como eram, não iriam querer tirar vantagem de uma situação.
Este quadro perdurou até o ano de 1868, quando as disputas se intensificaram, e assim adotaram a figura do árbitro nas partidas de futebol. Todavia, este árbitro só intervia quando surgisse alguma discordância em relação ao acontecimento no jogo, objeto de dúvida. O jogo era interrompido pelo árbitro no grito, visto não ter surgido a utilização do apito, que apareceu a partir de 1878.
Os assistentes surgiram em 1891 e em 1896 o árbitro começou a ter ingerência própria no andamento do jogo, não sendo necessário ter divergências entre os atletas, considerando que ele tinha maior conhecimento das regras do jogo.
Arbitragem nos dias de hoje
Vamos agora dar um salto na história e falar do futebol atual, o tal de “futebol moderno”.
Com a evolução progressiva das condições físicas dos jogadores profissionais de alto nível, que se tornaram verdadeiros atletas, com exercícios específicos a seu biotipo, tipo de células (branca ou vermelha, que determina se a pessoa é mais resistente ou mais veloz), o árbitro, que 30 anos atrás desenvolvia em média de 6 a 7 km por jogo, hoje desenvolve de 13 a 14 km por jogo!
Entretanto, tem que se levar em consideração que esta movimentação não é em velocidade constante, variando de estática a sprints; então o árbitro em questão muitas vezes parte da inércia a uma velocidade de 20 a 25 km/h, o que acaba gerando um desgaste físico muito maior.
Isto sem contar com a fadiga mental que se submete, em concentração total, visto que o tempo de “ver, analisar, decidir e interromper ou não o jogo” é o tempo de levar o apito à boca, em uma fração de segundo. Neste caso gera-se um desgaste emocional muito grande.
Claro que com a experiência, a tendência é decidir com mais sabedoria, se posicionar melhor ao invés de correr, mas a quantidade de quilômetros em uma partida não se altera. Na melhor das hipóteses pode se diminuir a quantidade de sprints que um árbitro utiliza durante o jogo, mas não sua movimentação total.
Para conseguir perfazer esta condição física, o árbitro depende única e exclusivamente de seus esforços, tanto físico, como financeiro, com pagamento de personal training, alimentação balanceada e específica. Tudo isto tem um valor considerável em seu orçamento.
Remuneração
Atualmente um árbitro que ostenta o escudo da FIFA, no Brasil recebe R$ 6.500,00 por partida. Caso seja árbitro CBF, chamado de básico, recebe R$ 4.700,00. Os árbitros assistentes ganham na média 60% da taxa de um árbitro.
Se um árbitro FIFA trabalhar em 6 jogos no mês, que é um número razoável, somente em honorários receberá R$ 39.000,00, fora as despesas de alimentação, transportes, hospedagem, que gera um aumento considerável no total da remuneração a ser pago (este valor não dá para aferir, pois depende das distâncias percorridas, data do jogo, diárias, hospedagem, etc.).
Vamos convir que raros profissionais gabaritados no Brasil recebem honorários desta magnitude, para um tempo relativamente curto de exercício de sua profissão. Claro que há a necessidade de se adicionar aí o tempo de preparo físico, cursos, simpósios, pré-temporada, reuniões, etc.
Com os atuais valores de remuneração do árbitro este fica extremamente contrariado quando não está escalado em uma rodada. E esse humor piora exponencialmente quando fica suspenso, na chamada “geladeira”, que afeta sobremaneira sua conta bancária.
Em resumo, e por óbvio: quanto mais for escalado e mais apitar, mais contente fica.
Quantidade de jogos
Abel Ferreira em seu livro Cabeça Fria Coração Quente, bem como em diversas entrevistas pós jogos, sempre se refere aos árbitros, que estão com estafa mental e física, pelo excesso de jogos.
Por outro lado, e conforme explanamos acima, o árbitro de futebol não parece estar preocupado com o stress mental ou físico. O que interessa é dinheiro na conta. Por isto é muito difícil mudar a mentalidade da arbitragem no Brasil, onde cada um olha o próprio umbigo e advoga sempre em causa própria.
Ainda em seu livro, o treinador faz sugestões para a melhoria do futebol brasileiro. Em uma das sugestões Abel Ferreira defende a profissionalização do árbitro de futebol no Brasil, ponderando que com foco exclusivo na profissão, o árbitro terá melhores condições para treinar fisicamente, preparar-se adequadamente para os jogos, cuidar da sua condição mental, reciclar-se, etc.
Profissionalização e seus desafios
Fala-se há muito tempo na profissionalização dos árbitros brasileiros.
Vamos fazer um exercício aqui. Atualmente o quadro de árbitros na lista da CBF chega a 900 profissionais no Brasil, entre árbitros e árbitros assistentes, incluindo quase 50 ostentando o escudo internacional.
Ou seja, temos outros 850 árbitros “básicos” (não FIFA).
Fora estes enumerados, temos as federações, com seus quadros de árbitros, que não pertencem ao quadro da CBF. Algumas destas entidades possuem maior poder econômico e assim consegue investir em seus profissionais registrados na arbitragem. Mas existem outras entidades, sem tamanho poder econômico das grandes federações, onde o futebol é quase amador. Incluindo os árbitros.
Muitas perguntas
O tema é extremamente relevante, mas há muitas variáveis ainda a serem equacionadas, principalmente em um país como o Brasil, cheio de curvas na legislação trabalhista.
Para ilustrar, em um processo de profissionalização dos árbitros no Brasil, poderíamos começar a questionar como seriam realizadas as escolhas para profissionalizar os árbitros? Seria por meritocracia? Ou seria por indicação política? Teríamos uma prova como na OAB para desempenhar a profissão? Haveria um curso antes? quem ministraria?
Mas seguindo com as perguntas: estes árbitros profissionalizados seriam subordinados à CBF, sediados na Barra da Tijuca, ou teriam uma entidade própria, livre de ingerências políticas, com sede em Brasília ou em outra região do Brasil?
E a remuneração? Qual seria o salário do árbitro profissional? Seria mensal? Ou seria por jogo, como temos atualmente? Ou uma combinação entre mensal fixo e também por jogo?
E quando o árbitro se contundir, seja trabalhando, seja treinando, ou mesmo em sua vida cotidiana? Continuaria sendo remunerado? Ou ficaria a suas expensas, sem remuneração?
Recentemente tivemos um árbitro FIFA que se contundiu em um jogo de campeonato regional, e ficou sem ser escalado, e, portanto, sem remuneração. Teve ainda que custear seu tratamento. Aparentemente nem um cartão de Natal recebeu de sua Federação!
Outra questão pertinente: profissionalizando estes árbitros, eles seriam regidos pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), com todos os seus encargos tributários, e benefícios, como férias, 13º salário, descanso remunerado, etc? E no caso de mulheres, seriam remuneradas caso engravidassem e ficassem o tempo legal em casa?
Ou abririam uma empresa, com CNPJ e prestariam serviços terceirizados? Ou ainda um modelo de cooperativa?
Outra variante na equação: atualmente, quem custeia a arbitragem são os clubes mandantes, que dependendo da importância do jogo, consome uma boa parte da renda. Com a profissionalização, o custo seria rateado proporcionalmente à importância dos clubes? Ou seria por quotas pelo tamanho das Federações das equipes da série especifica (A/B/C/D)? Ou seria custeado inteiramente pela CBF, que já leva uma fatia da renda dos jogos, para somente o patrocinar?
Conclusão
A ideia desse texto em provocar com essas questões não é inviabilizar o tema. Mas alertar que a profissionalização, por mais necessária que pareça ser, deveria ser resultado de um amplo projeto, feito por gente séria e competente, comprometida com mudanças para melhor nesse tema, com menos política e indicações por amizade e mais meritocracia e profissionalismo.
Enquanto não tivermos essa abordagem responsável, técnica e séria, com respostas práticas para todos os aspectos técnicos, jurídicos, organizacionais, a tão desejada profissionalização da arbitragem não passará de mera miragem de um oásis no deserto, dado que neste momento temos mais dúvidas que certezas.
Portanto, em minha opinião, ainda é uma utopia de apaixonados pelo esporte, pois a tal profissionalização da arbitragem hoje mais se assemelha a um Shangri-lá, com uma panaceia de soluções jogadas por pessoas conversando como se estivessem atrás de um copo de cerveja na mesa de um bar.
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Leia mais
+Coluna Osservatorio Arbitrale, por Oiti Cipriani
+Série SAF no Brasil…. no Canal do 3VV no Youtube e também em posts no 3VV (episódio 1 e episódio 2).
Comments (1)
Ronaldo Ramires
antes de mais nada, quero parabenizar o autor do trabalho Sr. Oiti Cipriani pela pesquisa, compilação e elaboração da matéria mas, vou falar oque eu acho, nesse país em que vivemos não acredito um pingo se quer nos homens que fazem política bem como, em quaisquer instituições principalmente as do futebol com seus vícios, protecionismos, clubismo e etc etc etc, eles sempre vão dar um jeito de melarem o futebol ao gosto e interesses escusos.