O seu time do coração terá um dono – é o que promete a nova era do futebol

Cruzeiro já está pronto para ser vendido (FOTO: DIVULGAÇÃO/MINEIRÃO)

Por Marcelo Moreira

O sucesso improvável ainda não convence o exigente Tim, que cresceu tomando chuva nas arquibancadas maltratadas de Stamford Bridge, em Londres, e no duro cimento do anel superior do estádio do Morumbi. “Ainda custo a crer que está durando tanto.”

Nascido em Bristol, na Inglaterra, e criado a poucas quadras do estádio do Chelsea e nas boas casas do bairro idílico de Alto de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, nunca alimentou ilusões a respeito de como o mundo do futebol mudou nos anos 2000. “Ninguém vira Real Madrid ou Manchester United em 12 meses.”

Filho de pai inglês e mãe brasileira, adotou os dois times dos para torcer e mergulhar fundo no futebol. O pequenino Chelsea o deixava resignado – apenas um título nacional desde 1905 -, resignação que era compensada com as duas décadas de sucesso do São Paulo entre 1985 e 2008.

O Chelsea era uma Portuguesa da Inglaterra, um time sem expressão na Inglaterra, que frequentara com alguma frequência a segunda divisão. E então um bilionário russo que fugiu de seu país acusado de alta corrupção compra o time, contrata o melhor técnico da época, monta uma seleção mundial e o clube ganha o campeonato depois de 50 anos.

“Não tenho ilusões. Desconfio sempre de Roman Abramovich (o bilionário russo). O que vai ser do clube quando ele cansar do brinquedinho e resolver vender o time para qualquer um?”, questiona o torcedor com certa irritação. Nem o segundo título da Champions League deste ano, em cima do Manchester City, alivia a angústia.

Essa é uma realidade que passa longe dos torcedores de Brasiil, Argentina e Uruguai, por exemplo. Alguém consegue imaginar um dono, um biliardário qualquer daqui, da China ou do mundo árabe comprando o Palmeiras, o Boca Juniors ou o Peñarol?

Pois o pesadelo pode começar a atormentar quem gosta de futebol no Brasil e se orgulha de os clubes ainda adotarem o modelo associativo e “ouvir”, de certa, forma o modelo tradicional. O clube pertence ao seu povo. Pertence mesmo?

Ninguém deu muita bola quando empresários começaram a “comprar times” pequenos do interior para “fazer” jogadores e lucrar. Não foi assim com Grêmio Barueri/Prudente e o Guaratinguetá? Com o mineiro Boa? O Desportivo Brasil? E o que dizer do RB Brasil, de uma multinacional europeia com times na Alemanha, Áustria e Estados Unidos e dois times no Brasil, um deles o Bragantino, arrendado e descaracterizado?

Um novo modo de administração de clubes está chegando devagarinho no Brasil e de forma sorrateira, sem maiores questionamentos, embora com amparo em algumas leis que exibem brechas.

No começo de dezembro, antes do fim do Campeonato Brasileiro, o colunista Lauro Jardim, de O Globo, cravou: “Avançou muito o processo de venda do Botafogo e do Cruzeiro para grandes grupos estrangeiros. Dentro de um mês, a XP, que coordena as duas operações, deve anunciar os novos donos do futebol desses dois clubes. Os favoritos nesta disputa são fundos de investimentos de países árabes e controladores de times europeus.”

São dois clubes destroçados e á beira da insolvência. O Botafogo, com torcida aquém de sua história e dificuldades enormes há muito tempo, capenga por anos e assombra sua torcida com seguidas quedas para a segunda divisão.

Chineses estariam de olho no Botafogo (Créditos: Vitor Silva/Botafogo)

O Cruzeiro, o maior campão da Copa do Brasil e bi brasileiro de 2013 e 2014, afunda em uma crise sem precedentes entre os grandes do Brasil e vai para a terceira temporada na série B.

Por esse histórico recente, dá até para entender a angústia pela espera de um mecenas salvador. Salvador?

Malcolm Glazer é um bilionário americano que ganhou dinheiro no mercado financeiro e investindo em indústrias diversas e empreendimentos comerciais gigantes. Como passatempo, saiu comprando times de beisebol, futebol americano e hóquei no gelo. E ousou cruzar o oceano Atlântico para arrematar nada menos do que o Manchester United, multicampeão e rival do Real Madrid como o clube mais valioso do mundo. Não sabia onde estava se metendo.

Achando que poderia mandar e desmandar, ignorando a tradição e a força do clube, esbarrou em diversos obstáculos, a ponto de ser impedido, por diretores e torcida, de chegar perto da sede e do estádio, o venerável Old Trafford.

Achando que era uma franquia qualquer de futebol americano, que sempre foi tratada como um produto, ameaçou gastar zilhões para tirar a equipe de Manchester e levá-la para outro lugar, como se fosse possível. Nos Estados Unidos isso acontece com certa frequência, mas no resto do mundo? Só podia ser piada.

Glazer nunca foi além da bravata, mas jamais engoliu o fato de ser contestado e, de vez em quando, volta a vomitar esse tipo de ameaça/sandice. Ele acha mesmo que pode fazer isso um dia? Levar o United para Birmingham, Bristol, Glasgow ou Cardiff?

E se, sem muitas alternativas e com arrecadação baixa, os árabes resolverem levar o Botafogo para Campinas (SP)? Ou Juiz de Fora (MG)? Ou Goiânia (GO)? Ou Maringá (PR)?

Esse “mundo novo do futebol” enseja horas e horas de especulações e conversas, mas a possibilidade de venda de clubes grandes é concreta, vai acontecer e mudará o panorama do futebol brasileiro.

O Cruzeiro destroçado e vilipendiado pretende liderar essa mudança. Anunciou no começo de dezembro a criação da sua SAF (Sociedade Anônima do Futebol). Na sequência, o clube enviou para a CBF o aviso para transferir suas vagas nas competições para sua empresa, incluindo o posto na Série B.

O próximo passo é a venda para investidores, mas depende de aprovação do conselho do clube. É o primeiro clube de grande porte que dá início ao processo de transformação em SAF pela nova lei.

Os gestores querem a venda de mais de 49% do clube para investidores —atualmente só é permitida a negociação deste percentual. A diretoria decidiu pela medida porque, em conversas com o mercado, percebeu que não atrairia sócios sem ceder o poder de gestão.

Em entrevista ao jornalista Rodrigo Mattos, do UOL, o CEO do Cruzeiro, Paulo Assis, revelou mais detalhes de como o clube pretende implantar seu novo modelo de gestão.

“A gente vai sempre trabalhar no que oferecer o melhor custo-benefício para o clube. Não pode ser só quem pagar mais”, imagina o executivo do Cruzeiro. “Conta o investidor com maior expertise (em futebol), velocidade de aporte de dinheiro. Do lado da associação, vamos preservar pelo menos 10%, com isso, resguardar direito de assuntos afirmativos como escudo, sede, cor, para manter a identidade.”

Assis afirma que a formatação do Conselho de Administração vai ser negociada com o que o investidor vai querer. “O investidor vai querer aproveitar a estrutura existente ou vai querer começar do zero? Dar possibilidade ao investidor de comprar o controle e não vai se sujeitar a essa troca de ciclos eleitorais de três em três anos. Esse pedaço do Cruzeiro que virou SAF vai ter mais autonomia.”

Por ser nova, a lei da SAF ainda carece de interpretação de certos pontos no tribunal. E o Cruzeiro ainda não tem seu modelo totalmente definido, o que depende da negociação com potenciais investidores, comentou o jornalista Rodrigo Mattos.

Os exemplos citados acima, de Chelsea, Manchester United e franquias de outros esportes populares norte-americanos, são, de certa forma, extremos, na comparação com o que se vislumbra no Brasil, mas jamais podem ser descartados, e envolvem riscos para as novas “entidades” que surgirão das “vendas” de clubes.

Será que árabes, chineses, russos ou americanos concordarão com as restrições eventuais que a lei brasileira possa impor na tentativa de evitar traquinagens ou para manter uma suposta tradição e história da agremiação? E se alguém achar que o Vitória tem de sair de Salvador? Ou mudar as cores? Ou mudar de nome?

O pioneirismo do Cruzeiro embute muitos riscos e ainda suscita muitas dúvidas sobre as operações diárias e cotidianas e relações com as federações e CBF. Paulo Assis e outros dirigentes tentaram esclarecer as dúvidas em mais consultas feitas pelos jornalistas do UOL.

As coisas são tão novas e complicadas que o anglo-brasileiro Tim, torcedor do Chelsea, até hoje tem dúvidas sobre os procedimentos que levaram Abramovich a engolir o clube 17 anos atrás. De uma Portuguesa londrina a uma espécie de Barcelona britânico, o Chelsea ganhou campeonatos ingleses, copas da Inglaterra, Liga Europa e duas Champions League da Europa entre 2005 e 2021. Antes, em 100 anos, tinham sido um campeonato inglês e duas Copa da Inglaterra, os mais relevantes.

“Era um clube de bairro, como o West Ham e o Fulham, e de repente foi anabolizado por dinheiro de origem desconhecida e dominado por um empresário autocrata. Muito do espírito verdadeiro do futebol do Chelsea se perdeu neste processo que é, inegavelmente, vencedor. São duas perguntas que eu faço desde sempre: valeu a pena, ou seja, ainda é o meu Chelsea? E até quando vai durar, ou seja, se for vendido, haverá o mesmo tipo de investimento ou voltaremos ao que éramos antes de 2005?”, diz um resignado Tim, feliz com os títulos, mas preocupado om a possibilidade de o Chelsea voltar a ser um São Caetano da vida.

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